Punk & Post-Punk

Punk & Post-Punk
Entre a fúria e a introspecção



Existem duas datas mágicas para o que será relatado a seguir: 1977 e 1982. Estes dois anos marcam duas fases do punk, primordiais para o entendimento da música das décadas posteriores. O ano de 1977 marca o surgimento, para o mundo, do punk rock, independente de ele já estar sendo praticado de forma mais branda nos EUA, antes disso. Já 1982 marca seu "multifacetamento": new wave, no wave, darkwave, góticos, hardcore, skins, ska, two-tones, world music etc. Nesse meio tempo é que o pós-punk existiu de forma mais intensa. Isso porque as delimitações não estavam definidas, tudo fazia parte de um único estilo, como se fosse o efervescente centro de um vulcão, prestes a expelir sua lava, lançada ao mundo nos anos seguintes em vários segmentos a escorrer pela montanha.

Nesse caldeirão, chamado pós-punk, cabia o experimento do Gang of Four, com suas batidas afro-punk-funks, lançando o fundamental Entertainment! em 1979; mas a banda somente ganharia as paradas do mundo em 1982, com o single I Love a Man In a Uniform, já totalmente pop. Cabia também os experimentos similares do Talking Heads, banda pertencente à cena proto-punk de Nova Iorque, mas que deu as bases da world music ao mundo, com seu My Life In The Bush of Ghosts, de 1982. Ou ainda a opção pelo eletrônico, em bandas como Ultravox, que começou punk com Ultravox! e terminou new romantic nos anos 80. Ou os caminhos tenebrosos (no bom sentido) pelos quais trilharam Damned e Siouxsie & The Banshees, por exemplo, que acabaram no gótico oitentista. Ou até mesmo aqueles que nunca abandonaram o pós-punk, apenas transmutando-o de acordo com os anos, como The Fall ou Nick Cave (seja no Boys Next Door, no Birthday Party ou com os Bad Seeds). Sem contar aqueles que ainda não sabiam que caminhos trilhar, mas sabiam que algo tinha de ser feito, como Mick Hucknall (Simply Red) e Roland Gift (Fine Young Cannibals), que foram vocalistas de (inexpressivas) bandas punks. O U2era punk. Tudo era punk, senão por ideal, por moda mesmo.

Ainda que dando essa impressão, o punk rock não veio acabar com nada: veio apenas acertar a rota da música jovem ocidental. Por trás daquela algazarra sonora, havia todo um "modus operandi" que norteou a produção cultural posterior, indo desde a democratização da música até a literatura (vide o impulso dado aos fanzines). Com isso, não há dúvida alguma, resgatou a fórmula da música pop (quase perdida em meios às plumas, paetês, espetáculos e exageros dos anos 70): mensagem direta e imediata, em democráticos três ou quatro minutos, tempo esse suficiente para que todos pudessem dar seu recado.

Esse punk da primeira hora era feito por moleques que mal sabiam tocar seus instrumentos, ou desconheciam seus limites (tanto os deles próprios quanto os dos ditos instrumentos). Então, para que chamassem a atenção e fossem ouvidos, vindos dos subúrbios e sem voz na mídia, levaram a extremos aquela fórmula pop: as músicas, barulhentas, mal passavam dos dois minutos; os vocais eram vociferados, gritados mesmo; o baixo estalado; a bateria veloz e furiosa; a guitarra distorcida; e assim por diante. Teclado, num primeiro momento, nem pensar, pois era o símbolo máximo dos representantes do mainstream da época, ou seja, do rock progressivo - que, contraditoriamente, não deixava de ser popular, pois era moda. Essa visão distorcida desse potencial "inimigo" (o teclado) só foi revista com a evolução do punk para o pós-punk.

Costuma-se dar o nome de pós-punk àquela estética sonora surgida imediatamente após o punk. É como se fosse um primeiro estágio de evolução da crueza punk. E dessa evolução continuada surgem praticamente todos os estilos e diretrizes do universo musical dos anos 80, indo desde os estilosos góticos até as dançantes raves e seus ritmos eletrônicos. Sem contar que estilos já existentes e consagrados, como o ska, o reggae e até o heavy metal, tiveram de refazer seu caminho. O próprio heavy metal só ganhou a cara que conhecemos hoje quando assimilou a fúria punk (via thrash, black e outros estilos mais radicais).

Dessa forma, vamos encontrar bandas como o The Police ou o The Jam, entre outros, que eram formadas por músicos bastante técnicos. O primeiro do Police (Outland's D'Amour), lançado em 1977, tinha o frescor punk, mas o segundo, do ano seguinte, já trazia música dançante e elaborada, a partir do título do álbum - Regatta de Blanc, ou seja, "Reggae de Branco". Pra se ter uma idéia, Andy Summers, guitarrista do Police, já havia tocado com Eric Burdon (Animals) e Robert Fripp (King Crimson). Por seu turno, para o Jam existir como punk, justificava-se que o estilo tinha influências mod sessentistas, o que nem sempre era verdade. Basta lembrar que um dos maiores hits do Generation X tratava com desdém justamente essa geração mod: "Try to forget your generation (...) your generation don't mean a thing to me (...) there ain't no time for substitutes / there ain't no time for idle threats", eles cantam em Your Generation, numa alusão direta à My Generation e Substitute, hinos do The Who. O Exploited foi mais direto e visceral, ao cantar "Fuck a Mod", alguns anos mais tarde, liderando o segundo levante punk. Mas o Jam era bem maior que o punk, tendo pulado logo esse estágio para um estágio pós-punk elaborado e elegante, que desembocava em canções de rara beleza e sensibilidade, como That's Entertainment.


A alcunha (pós-punk) é envolta em mistérios e definições. Na Inglaterra, pos punk era uma contração de positive punk, rótulo que servia para definir o som de bandas como Siouxsie & The Banshees, por exemplo. Mas, como não raro essas bandas vinham do punk (ou se aproveitaram da onda) associou-se o estilo como algum tipo de som posterior a ele (ou seja, se não sabem tocar: é punk; se aprenderam um pouco: é pós-punk). Em outros países europeus, o estilo ficou conhecido como post-punk ou after punk, como podemos ver em alguns flyers da época. Não devemos esquecer-nos que, mesmo fazendo algum sentido, essa definição de posterior não é totalmente verdadeira. Se pegarmos trabalhos dos britânicos Wire, veremos que eles já traziam, em seu primeiro disco (Pink Flag), de 1977, sons pós-punk no estado puro. Ou seja, ao mesmo tempo em que continha verdadeiros hits do "punk 77" (como as clássicas 12 x U ou Mr. Suit, entre muitas outras), também apresentava ao mundo músicas que, anos mais tarde, definiriam o pós-punk (como Reutersou a própria faixa-título, Pink Flag). O U.K. Sub's, que tinha um músico de blues como vocalista (o folclórico Charlie Harper) tinha uma música meio cadenciada, chamada Warhead, que também traz características do pós-punk, principalmente pelo baixo marcando forte e pela guitarra esparsa.

Aqui em terras tupiniquins, houve uma associação com esse "posterior", sendo conhecido como pós-punk (ganhando o acento gramatical da língua portuguesa). Não sem antes haver uma pequena polêmica: por conta das características próprias do estilo pós-punk, não podendo chamá-lo de punk, nem muito menos de gótico, optou-se por nomeá-lo com uma das características desse som: dark. Realmente, a predominância da obscuridade (tanto instrumental quanto temática) faz com que essa classificação não seja lá tão falsa, mas é pouco abrangente e limitada, por conta da riqueza do leque pós-punk. Dizer que Smiths ou Echo and The Bunnymen, ou ainda as brasileiras Muzak e Kafka, por exemplo, eram darks, não é de todo falso, mas passa longe de definir com propriedade o som que essas bandas apresentavam. Mais recentemente, optou-se por chamá-las de darkwave ou cold wave, que não passam de variações do ("apenas") dark.

Mesmo advindo do punk, o pós-punk difere desse em vários aspectos, a começar pela temática lírica. Essa passa a ser reflexiva, ao invés de acusativa. Enquanto o punk grita contra o sistema e as mazelas de nossa sociedade, o pós-punk se retrai em seu mundo, não raro procurando em si mesmo os problemas por que passa (In my life / why do I give valuable time / to people who don't care if I / live or die – Heaven Knows I'm Miserable NowThe Smiths). No começo de 1978, após apontar suas armas para a sociedade britânica, Johnny Rotten assume seu nome verdadeiro, John Lydon e funda o Public Image Ltd., captando o momento e questionando: You never listen to a word that I said / you only seen me for the clothes that I wear / or did the interest go so much deeper / it must have been the colour of my hair, na música que leva o nome da banda.


Não é difícil compreender essa mudança de foco, do "você" punk para o "eu" pós-punk. O punk, para protestar, precisa saber contra o que ou quem está lutando, precisa conhecer seu "inimigo". Além disso, tem de, supostamente, oferecer alternativas para um mundo melhor (olhando pelas características do punk britânico, uma vez que o norte-americano vai mais na linha "festeira"). Isso fez com que muitos punks se tornassem verdadeiros ratos de biblioteca, indo atrás das idéias dos grandes pensadores da humanidade. Mesmo simpatizando primeiramente por escritores que só tinham em comum a aversão ao capitalismo (como Marx, Bakunin, Poudhon etc), foi um processo natural que a leitura abrisse a mente para a busca de mais conhecimento e de novas descobertas, o que fez com que despertasse o interesse para outras questões sobre nossa condição de existência. E descobrir outras questões e outras respostas foi o caminho natural.

Mas a explosão do punk não surtiu o efeito desejado. É lógico que o saldo foi positivo, pois praticamente tudo o que foi feito em matéria de música posteriormente tinha um pé no punk. Mas percebeu-se que, exatamente no campo musical, acabou havendo apenas uma troca de ícones, nada mais. Além do que, e mais grave, os alvos do tiroteio punk (os grandes nomes da música mundial) saíram intactos. Entre si (punks) começaram as primeiras brigas, ora por caminhos musicais diversos que começaram a ser trilhados (inaugurando o termo "traidor do movimento"), ora por idéias e ideais confusos, na maioria das vezes políticos.


Um desses ditos traidores foi o Damned. Dave Vanian, seu vocalista, era coveiro, e costumava se apresentar pintado como um Nosferatu, desde os primeiros shows da banda. Lançaram o primeiro single de uma banda punk britânica (New Rose, em outubro de 1976), e o primeiro LP veio logo depois (fevereiro de 1977 - outro clássico do punk, Damned Damned Damned). As composições eram todas do guitarrista, Brian James, que os deixou logo após o segundo disco. Com Vanian assumindo o comando da banda, esse lado "filme-B" ganhou corpo: lançam o single de Love Song ao final de 1978, iniciando a saga que os levou para o gótico, nos anos 80. Outra banda acusada de "traição" pelos punks foi o Clash. Também responsável por outro clássico do punk 77, o auto-intitulado álbum de estréia, eles resolveram focar suas canções em ritmos e estilos jamaicanos (dub, reggae, ska), caribenhos (como a salsa), em temas politizados baseados nas guerrilhas de países centro-americanos (como Nicarágua e El Salvador). Até que Mick Jones abandonasse a banda e o barco punk de vez, assumindo o Big Audio Dynamite.

Esse momento de indefinições, mais a visão de um mundo envolto em guerras e com medo de uma hecatombe nuclear, proporcionaram que a temática lírica do pós-punk juntasse o no future punk aos ares de apocalipse (The Day After, Síndrome da China, o acidente em Chernobyl etc.) que se respirava com a proximidade do fim-de-século (temor natural do ser humano em toda virada de século). Só pra constar, a guerra (e seus efeitos) é recorrente na temática lírica punk, sendo abordada de diversas formas: irônicamente (Holiday in Cambodja - Dead Kennedys), sarcasti-camente (Let's Start a War, Said Maggie One Day - Exploited), de forma séria (Massacred Millions - The Varukers), raivosa ( e mais um monte - Discharge) etc.

Esse aspecto sombrio, por vezes sorumbático e melancólico (ou seja, uma atmosfera totalmente dark) foi reforçado pela estrutura instrumental das músicas, principalmente pelo novo papel que coube ao baixo. Deixando de ser um instrumento de cordas que "dá notas" ao bumbo da bateria, ele se desvencilha dela e passa a ser, na maioria das vezes, o fio condutor da música. O baixista Jah Wobble, um ex-taxista jamaicano amigo de Lydon, que formou o PIL junto com o ex-Pistol, foi um dos responsáveis por isso. Seu instrumento soa destacado em relação aos outros, no primeiro disco da banda (Public Image), lançado no natal de 1978. Quase ao mesmo tempo, o Warsaw transforma-se em Joy Division, pois mudara de baterista e deixara os anos de punk para trás. Lança Unknown Pleasures (1979), o primeiro disco oficial. Nele, Peter Hook divide de igual para igual as cordas de seu baixo com as da guitarra de Bernard Summer. Tente imaginar, por exemplo, Day of the Lords sem aquela linha de baixo. Com freqüências graves, ajudava a dar o ar soturno que as letras pediam. Isso deu liberdade natural à bateria, que acabava optando por levadas também criativas, quase sempre (por motivos óbvios) caindo para o lado tribal. Double Dare (Bauhaus) é um bom exemplo disso; ela seria outra música sem aquela bateria. A batida se repete num riff hipnótico, ajudado pelo baixo distorcido, tocado em Mi e Fá (ou seja, apenas um vai e vem de tom e semitom), com uma guitarra que emite sons aleatórios e às vezes desconexos.

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Com baixo e bateria no mesmo plano que os outros instrumentos, a guitarra opta por explorar mais os timbres que o barulho, puro e simples. Os acordes cheios e distorcidos do punk deram lugar a dedilhados leves, riffs simples, mas eficientes, e levadas que remetiam àquelas que se produzia com riqueza ímpar na psicodelia dos anos 60. Keith Levine, outro membro fundador do PIL e que fez parte da primeira formação do Clash, dava o tom e mostrava como deveria ser a guitarra no estilo pós-punk. Daniel Ash (Bauhaus) nos apresenta uma anti-música, emitindo sons, timbres, harmônicos e efeitos de pedal de guitarra, em músicas como a citada Double Dare, no experimentalismo de Paranoia Paranoia, e até mesmo em Bela Lugosi's Dead (de 1979, considerada por muitos o marco zero do gótico). Outro grande expoente da guitarra, que cristalizou essa característica anos mais tarde, é Johnny Marr. À primeira vista tão simples que qualquer um faria, a riqueza do dedilhado nas músicas dos Smiths espanta, de tão diferentes que eram.

Os vocais ganham nova dimensão: antes gritados, desesperados, agora são mais graves, empostados, melodiosos, podendo até ser sussurrados. Nada impedindo, no entanto, que permanecessem no formato punk. O elo entre um e outro foi mantido, na maioria dos casos. A começar pelo próprio John Lydon: não há grande diferença entre seus vocais no Sex Pistols e no PIL. Interessante notar que nos Sex Pistols (ou seja, punk, onde deveria ser mais escrachado) Lydon trabalhava com mais melodias que no PIL (pós-punk), onde opta por vocais mais monocórdicos. Andi Sex Gang, vocalista do Sex Gang Children, banda que pulou o estágio punk, mas que representa bem essa passagem para o pós-punk, tinha uma flexão vocal que, muitas vezes, lembrava o timbre do próprio John Lydon. No Buzzcocks, por trás das camadas de guitarras distorcidas, Pete Shelley cantava as desesperanças e frustrações do amor adolescente de uma forma bem melodiosa, quase pop no sentido literal, mas que não deixava de ser punk.

Exposto dessa maneira, pode-se pensar: então, do punk para o pós-punk, mudou tudo! Não exatamente. Algumas características marcantes do punk continuaram intactas, como o espírito contestador, o niilismo, o primitivismo, o minimalismo, o hedonismo e, em menor grau, a iconoclastia.

niilismo (aqui valendo como negação dos valores da geração precedente) não é tão forte quanto parece. Num primeiro instante, dá a impressão que o punk acabaria com tudo, que viria para derrubar toda estrutura da cultura ocidental, desde a música até a moda (In 1977 / I hope I go to heaven (...) No Elvis, Beatles or the Rolling Stones! – 1977The Clash). Mas não foi bem isso o que aconteceu, como sabemos. Na mesma medida em que assustou, foi assimilado pelo sistema. Isso, de certa forma, desmoralizou o punk. Mas o pós-punk tem sua parcela niilista muito forte, começando pelo método de gravação, produção e mixagem, que privilegia todos os instrumentos democraticamente (o punk privilegia mais o barulho da guitarra, coisa que o hard rock setentista, em outra medida, já fazia). E também em aspectos visuais. Algumas bandas, a começar pelo Echo & The Bunnymen, dispunham o baterista na frente do palco, ou ao lado dos outros instrumentos (ficando os membros da banda na mesma disposição no palco). Antes deles, o T. Rex já fizera algo parecido, mas Marc Bolan ficava num degrau acima, mesmo que na parte de trás do palco.

primitivismo consistia na redução ao máximo dos recursos necessários para se fazer música, num retorno ao básico do básico. Esses recursos podiam ser tanto tecnológicos (como instrumentos musicais, gravação e meio de distribuição) quanto em relação à música em si, incluindo a temática lírica. Assim, como muitos outros da época, a primeira fita do Warsaw, por exemplo, com cinco músicas, foi gravada em apenas um dia (18/07/1977). É importante lembrar que na época da primeira explosão punk, o mainstream era dominado por bandas de rock progressivo ou por bandas e artistas pop que utilizavam recursos como guitarras limpinhas, teclados na maioria das vezes angelicais, vocais doces e melosos, backing vocals precisos etc., em produções que demoravam meses para conhecer seu término. Isso tudo foi agravado com a moda de se juntar o rock à musica clássica, que teve seu auge em 1974, com Rick Wakeman e sua Journey to the Center of The Earth. Dessa forma, o show business estava dominado por (e reservado para) quem tinha muita grana e avançado conhecimento técnico e musical.

Os punks entram em cena deturpando e desmoralizando todo esse stablishment (tanto no mainstream quanto no underground). Para isso, baixo, guitarra e bateria ligados em amplificadores baratos, que traziam a tiracolo uma microfonia proposital, era só o que precisavam. E os vocais desesperados, gritados, nervosos, levam ao primitivismo temático, sem técnica, sem falsetes ou outros recursos, rimando "you" com "do" sem constrangimento. Mesmo em coisas mais calculadas, o improviso era a regra. Diz a lenda que Johnny Rotten usou a palavra anarchist em Anarchy in the U.K. somente para rimar com antichrist, que ele já tinha escrito e não queria mudar. Em outro canto da mesma Londres de Rotten, Mick Jones havia escrito uma música, chamada I'm So Bored With You. Ao mostra-la a Joe Strummer, esse logo lembrou o caráter punk revoltado da banda, e acrescentou um "S.A.", fazendo nascer um dos clássicos do primeiro disco do Clash: I'm So Bored With The U.S.A.. E assim, sem rebuscamento algum, falavam a linguagem das ruas. É aí que justifica-se o culto a uma banda considerada por muitos como precursora do punk, do pós-punk e do gótico: o Velvet Underground.


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Surgida em Nova York, no final dos anos sessenta, destacaram-se porque, enquanto a maioria das bandas começava a se sofisticar (em caminhos que levaram ao glam e ao progressivo), eles fizeram o inverso, vestindo preto em contraste ao colorido espalhafatoso dos hippies e usando com maestria ímpar o conceito minimal e primitivista na música. John Cale, baixista e violinista da banda, estudava música e aplicava esse conceito no som deles: Heroin, por exemplo, tem um violino tétrico de uma nota só, a música toda (nos anos 80, o power pop A Girl Like You, de Edwyn Collins, usava o mesmo conceito de uma nota só, sem soar cansativo). O guitarrista, vocalista e principal compositor, Lou Reed, falava de drogas, traficantes, marginais, travestis, prostitutas e coisas desse tipo. Seu vocal reto e limitadíssimo serviu de álibi para os vocalistas punks e pós-punks, anos mais tarde. A baterista Mo Tucker tocava de pé, em um kit de bateria de três ou quatro peças, recurso utilizado por bandas do revival rock'a'billy (como Stray Cats) e mesmo do pós-punk (como o Jesus & Mary Chain).

Quanto ao minimalismo, vale lembrar que não é invenção dos punks - eles apenas usaram com propriedade essa estética. Assim como John Cale já aplicava essa forma de expressão musical, outros músicos (maestros e compositores) anteriores a ele já estudavam esse conceito. Uma série intitulada "Composições 1960", de La Monte Young, pode ser considerada a obra inaugural dessa escola, cuja premissa era de que uma música poderia resumir-se a uma ou duas notas, que poderiam ser repetidas à exaustão, com a intenção de hipnotizar o ouvinte. Nos anos 70, no outro extremo dos punks, Philip Glass também trabalhava em obras minimalistas, algumas reforçadas por imagens, como no filme/disco Koyaanisqatsi, de 1983, primeiro de uma trilogia sobre os problemas do mundo moderno. Interessante notar que, nesse trabalho, algumas músicas (minimalistas) são cânticos entoados por vozes masculinas, que se aproximam bastante da estética gótica da época. Não era de todo estranho, pois Glass já utilizara recursos do barroco em algumas de suas obras. Inclusive, já nos anos 90, ele prepara uma trilha para o filme Drácula (aquele mesmo, clássico de 1931, com Bela Lugosi), quando da digitalização do mesmo.

No punk, o minimalismo é facilmente detectável. Os acordes cheios, com o baixo marcando a tônica, não trazem problemas na identificação das duas ou três notas utilizadas. Mas isso não significa monotonia. É só escutar qualquer disco dos Ramones e perceber que mais notas só atrapalhariam, na realidade. Marky Ramone, que antes havia tocado no Dust (como Marc Bell) desaprendeu a tocar para poder entrar no Ramones, uma vez que na banda Dust ele simplesmente destruia a bateria! No pós-punk, esse minimalismo pode ser evidente (como em Transmission, do Joy Division, com suas duas notas marcadas pelo poderoso baixo) ou disfarçado (como nos floreados de baixo de The Cutter, que escondem as também duas notas da música). Mesmo partindo para os lados eletrônicos, ainda encontramos essa característica. Não só nas batidas da música industrial, sem problemas de identificação, mas também nas bandas mais acessíveis e (pretensamente) mais preocupadas com arranjos; no Ultravox, por exemplo: um de seus maiores clássicos, a belíssima Vienna, também é trabalhada em cima de duas notas.

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Em geral, a estética minimalista pós-punk pede que haja momentos de "silêncio" entre os instrumentos, o que os torna facilmente destacáveis. Isso traz uma carga maior de tensão, por vezes reflexiva, para a música. O Kraftwerk, mestre nas experiências eletrônicas musicais, ainda nos anos 70, usou com maestria essas noções, incluindo esses momentos de "silêncio" (vide Hall of Mirrors, The Robots, Musique Non Stop etc.). Não deixa de ser uma identificação com o minimalismo, o que possibilitou que o Kraftwerk não só passasse incólume pelo corredor polonês do punk como servisse de força para que juntasse seus experimentos eletrônicos à fúria da distorção. Isso originou as bandas eletrônicas estilo Cabaret Voltaire ou até mesmo o Devo, que, no começo de carreira, apresentava músicas que se assemelhavam a um cruzamento de um Kratwerk mais pop com o caótico som dosResidents, outros mestres na arte de experimentação musical. Podemos considerar o Krafwerk o responsável direto pelos sons eletrônicos dos anos 80, desde o Human League, que, na ativa desde 1977, tinha em sua formação apenas dois sintetizadores e um vocalista.

hedonismo vem logo após a opção pelo primitivismo e minimalismo. No punk, o hedonismo (busca pelo prazer como sentido de vida) pode ser interpretado pelo lema "live fast, die young", levado ao pé da letra por alguns (como Darby Crash, do Germs, ou mesmo Sid Vicious) e transformado em música por outros (Circle Jerks). Considerar o prazer o fim da vida era uma das marcas do punk: pra que anos de conservatório musical se dá para conseguir algo até melhor no aqui e agora, nesse exato momento, e vivê-lo intensamente, já que "não há futuro"?

Os economistas têm uma variante para o hedonismo: procurar obter o máximo de lucro com o mínimo de esforço e de recursos possíveis. E é onde se apóia o pós-punk, quando se apropria de elementos do punk, refazendo-os e transformando-os em algo mais rico e de brilho próprio. Há várias músicas que ilustram perfeitamente esse hedonismo, mas podemos pegar como exemplo Disorder, do Joy Division. Começa com uma levada de bateria que é quase um riff, o que a faz reconhecível nos primeiros segundos (coisa quase que impensável no formato de música normal, até então). Entra um baixo marcante, também utilizando o recurso do riff, melódico, mas ao mesmo tempo minimalista, primitivo, sem alterações no decurso da música. A guitarra entra, porém não barulhenta, mas economicamente criativa e distorcida no ponto exato entre a melodia e a saturação. Por fim, entra o vocal, reto, limitado, que começa com os versos "estive procurando por um guia que viesse e me levasse pela mão", terminando com a decepção de "tenho o espírito / mas perdi o sentimento". Mórbido. A soma desses quatro fatores é indivisível: retire um e a música se perde.

Essa característica hedonista do pós-punk atinge também o aspecto visual. Tanto no punk quanto no pós-punk vale a premissa de que o visual de bandas e fãs deve ser o visual casual, das ruas. Mas, por suas características próprias, o punk carrega nas tintas (literalmente), deixando meio forçado esse visual que deveria ser o mais espontâneo possível. O pós-punk, não, ele literalmente não tem um visual específico. O Joy Division, em quatro anos de existência, só fez uma sessão de fotos da banda, e mesmo assim, com as roupas usadas no dia-a-dia, pelo proletariado britânico. Nada mais importava, além da música. No máximo, uma roupa escura, discreta, sem excessos. O visual punk, pelo contrário, primava pelo exagero: como uma tribo, seus adeptos deveriam ser reconhecidos à distância, no mundo todo. Esse visual combinava trajes maltrapilhos com roupas S&M, vendidas (não por acaso) na loja de roupas Sex, de Malcom McLaren e Vivienne Westwood. Esse exagero fazia parte do jogo: chocar por chocar, incluindo aí desde cabelos pontudos, despenteados e/ou coloridos, até adereços não usuais, como alfinetes, broches, lâminas e suásticas. Esse último detalhe provocou desentendimentos entre os punks. Sid Vicious causou problemas no próprio meio punk quando passeou num bairro judeu, em Paris, com uma camiseta estampada com uma suástica (aliás, da loja Sex). O Clash recusou-se a tocar com os Sex Pistols enquanto eles usassem esses adereços. E ainda começaram uma série de concertos contra o racismo.

Por fim, a iconoclastia (I am an antichrist... o primeiro verso do primeiro hit punk, Anarchy in the U.K., com os Sex Pistols), que acabou sendo meio esquecida, por também ter trazido certos dissabores, principalmente aos punks. Quando Johnny Rotten vestia uma camiseta rabiscada com um "I hate" sobre a serigrafia de Pink Floyd, ele tentava destruir um mito. Mas ele não imaginava que, anos mais tarde, eles mesmos, os Sex Pistols, virariam ícones, tanto quanto o Pink Floyd. Para o pós-punk, a iconoclastia seria utilizada no sentido mais literal, ou seja, religioso. Não direto, como os contemporâneos do black metal (que praticamente se apóiam única e exclusivamente nisso), mas de uma forma mais pessoal, no sentido de decepção ante as crenças e conceitos pré-estabelecidos, incluindo aí o próprio estado de espírito e religiosidade de cada ser humano (I still believe in God / but God no longer believes in me (...) heaven and hell / I know them well / but I haven't yet made my choice", em "Wasteland", The Mission UK - Till legends live and man made God again (...) as we move towards no end / we learn to die / red tears are shed on greyLove Like BloodKilling Joke).

Essas questões mais filosóficas seriam ampliadas e melhoradas pelos góticos. Por exemplo, o medo da morte - natural do ser humano, o único animal que têm consciência de que vai morrer um dia. Desde o punk, a morte é tema recorrente. Mas no punk ele vem mais na forma direta e universalizada ("O mundo vai acabar" é uma das frases mais utilizadas por punks daqui e de lá de fora). O medo da guerra nuclear, advinda de um conflito entre Estados Unidos e União Soviética e a aniquilação da raça humana como a conhecemos hoje era o medo imediato do primeiro e, mais ainda, do segundo levante punk. Basta dar uma rápida olhada nas capas de discos dessa época. No pós-punk, a temática é mais no sentido da desolação, que poderia ser provocada por uma possível guerra, podendo ser a mesma cantada pelos punks. Mas que poderia ser também por uma desolação interior, uma catástrofe na existência pessoal (Now my hurricanes / broke down this ocean rainOcean RainEcho and The Bunnymenand I awake from dreams / to a scary world of screams (...) and I feel that I'm dying / I'm down on my kness / I want to go / I want to stayDarklandsJesus & Mary Chain). Assim, ilustrando, o punk se preocupava com a explosão da bomba nuclear; o pós-punk com os efeitos dela no dia seguinte; o gótico com o apocalipse, no fim de tudo, nos limites da alma. Dos três modos de ver a morte, o gótico se preocupa mais com o desconhecido, o intangível, o imprevisível, o enigmático. E esse fascínio pelo mistério do sobrenatural é seu grande mote.

Depois de tudo isso, podemos dizer que o gótico parte do pós punk, sendo assim um segundo estágio acima do punk (ou a partir dele). E que essa passagem também merece uma análise à parte, ou seja, como surgiu o gótico do pós-punk. Por isso, devemos ter em mente que não existe uma linha que delimita ou separa um do outro. E nem todas as bandas são exclusivamente desse ou daquele estilo. Ou, mais longe ainda, que as bandas em geral se limitem a esses três estilos. Como vimos no começo, muitas bandas ou artistas começaram punks, partindo daí para caminhos distintos. Isso foi necessário, para que o rock voltasse para as ruas, voltasse para o domínio popular, de uma forma democrática. Passado a bebedeira (o punk), veio a ressaca (pós-punk), que derivou em uma melhor visão sobre o mundo, começando pelo mundo musical. E do punk/pós-punk surgiu a new wave, por exemplo, que pode ser considerada um punk bonitinho, feito para a sociedade de consumo. Mas também tem as várias outras waves, com bandas como XMal Deutschland, de um refinamento fora do comum. Também as experiências eletrônicas, que podem ser tanto a house pop que ganhou as pistas e as paradas de sucesso do mundo (como a praticada pelo New Order nos anos 80), quanto a E.B.M. de bandas como Front 242 - ou ainda o industrial de gente como MinistrySkinny Puppy ou Einsterzunde Neubauten. Mais recentemente, houve uma radicalização ainda maior nesse campo eletrônico, com bandas como Young Gods, ou com o advento do digital hardcore, em bandas como Atari Teenage Riot ou Rancid Hell Spawn. Há uma cena congelada no tempo, que tem bandas ainda hoje atuantes, mas que se concentra e mira nesse momento 79-82, principalmente nas bandas da célebre casa noturna Batcave: os chamados death rockers. Sem esquecer também dos punks ortodoxos, que migraram para um som mais violento, fazendo surgir o hardcore, como Agnostic FrontDead KennedysDischargeetc., que nada têm que ver com o gótico, a não ser pelo ponto de partida (ou seja, o próprio punk). E há aqueles que nunca abandonaram o barco, como Stiff Little FingersU.K. SubsGBHetc., que continuam fazendo o bom e velho punk, seja safra 77, seja safra 82, sendo quase um flash congelado desse momento único, especial e (por que não?) - mágico!

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