A Feminilidade e a Ambiguidade

(Paul Hodkinson, "GOTH - Identity, Style and Subculture")


(Segundo algumas linhas teóricas...) (...) devido a natureza construída e, logo maleável, das categorias sexuais, elas podem, nas circunstâncias culturais e discursivas adequadas, se tornar desconectadas do conjunto de performances estilísticas e comportamentais repetidas que na verdade criam e reproduzem as identidades de gêneros. (masculino e feminino) (...) Considera-se que a transgressão paródica dos papéis dos gêneros tem o potencial de expor a natureza construída e performática das noções dominantes de masculino e feminino, que formatam esses segmentos. (ex: Butler, 1990, 1991, 1993; Meyer 1994).


Embora sem a paródia, ou sem fins políticos explícitos, o meio ambiente padrão característico da cena gótica afrouxou consistentemente os elos entre as facetas estilísticas dos gêneros e as categorias sexuais fixas de homem e mulher. Mais especificamente, sem realmente considerar estas categorias insignificantes, o gótico, desde o seu começo, se caracterizou pela predominância, tanto nos homens quanto nas mulheres, de tipos de estilos específicos que seriam normalmente associados com feminilidade. Um dos meus entrevistados por e-mail nos forneceu uma útil introdução a esse tema:


~//~

— Eu acredito que a natureza da "cultura gótica" em si, conduz a "feminilidade"... naquela ambiguidade sexual que é expressa pelas roupas, maquiagem e música da cena.

~//~


Mais importante, estilos específicos de maquiagem, que tem sido lugar comum desde os tempos do Bauhaus (1979-1983) e da Batcave (982), permaneceram populares tanto para os homens quanto para as mulheres, durante o final dos anos 90. Da mesma forma, góticos de ambos os sexos sempre usaram quantidades consideráveis de jóias de prata, especialmente brincos, argolas nasais, braceletes e gargantilhas. A principal mudança que ocorreu durante os anos 90 foi que os piercings, para ambos os sexos, também se espalharam para os lábios, sobrancelhas, línguas e umbigos e que as jóias eram mais para o colorido.


Além das jóias e da maquiagem, numerosos exemplos de estilos de roupas relativamente femininos, muitos dos quais também consistentes com a ênfase no sombrio, tem sido importantes para ambos os sexos na concepção da cena. Exemplos estabelecidos há um tempo relativamente longo incluíam os itens Vitorianos (...), juntamente à camisas com babados e jaquetas de veludo para ambos os sexos.


Todavia, pelo final dos anos 90, a ênfase de longa data na feminilidade se intensificou tanto em popularidade quanto em radicalidade se comparada com uma década antes. Enquanto o uso, por homens e mulheres, de meias arrastão apertadas e tops de malha tenha sido parte do estilo gótico desde a época do Specimen (aprox. 1982), ele se tornou um lugar comum das metade para o final da década de 90. Ainda mais notavelmente, através de um processo de transgressões individuais, o uso de saias longas e curtas, tanto por góticos como por góticas, se tornou comum.


Aconteceram mais diversificações na forma pela qual a feminilidade se manifestava. Muitos dos estilos de roupas dos anos 80, agora associados aos "góticos tradicionais", foram frequentemente combinados com novas influências, ou rejeitados em favor destas.

Em um movimento que remonta a algumas das influências punks originais, a aspectos da cena fetichista dos anos 90, e, indubitavelmente, a indústria do sexo, se tornaram largamente populares. Era cada vez mais fácil ver góticos de ambos os sexos vestindo calças, camisas, saias, corsets, tops e coleiras de borracha ou PVC preto e, às vezes, colorido.



Importantíssimo, no contexto da cena gótica, do mais simples ao mais radical exemplo destas vestimentas, foram sempre valorados mais em termos de suas qualidades estéticas subculturais do que por suas conotações sexuais. O valor simbólico diferenciado do vestuário fetichista no meio ambiente subcultural e no não subcultural era demonstrado pelo fato de, enquanto completamente confortáveis vestindo tais roupas em um clube gótico, muitas góticas ficavam nervosas a respeito das possíveis reações a elas em um meio que elas consideravam mais comercial (mainstream):


~//~


— Digamos que eu fosse a um clube da moda vestindo o que eu vesti no último show do "Dust to Dust" (banda gótica), que consistia de várias camadas de arrastão rasgadas, botas plataforma, calças "quentes" e um corset bem decotado, eu teria sido agarrada por todos os lados e teria provavelmente terminado a noite estuprada ou algo assim.

~//~


Voltando ao tema de forma mais genérica, a feminilidade não se manifestava apenas em fatores controláveis como roupas, maquiagem e acessórios, mas também na aparência física dos corpos e rostos dos indivíduos. Assim, desde os tempos do Bauhaus, os homens mais venerados e desejados da cena gótica, em termos de aparência, tendiam a ter faces e corpos esguios, e muito pouco pelo corporal. O entrevistado a seguir explicou que, para ele, o apelo chave da cena gótica era que, neste clima cultural diferenciado, o seu corpo ligeiramente efeminado se tornara uma característica positiva, em vez de negativa:


~//~

— É que basicamente eu posso me sentir confortável sendo uma cara magricela e frágil, e que, tipo assim, é um pouco emotivo às vezes. Na verdade, isso é quase um bônus.

~//~


Corpos ou faces esguios, eram, como um todo, também valorizadas para as mulheres, coerentemente com a moda mais dominante, embora a habilidade de expor um colo amplo com a ajuda de um corpete ou outro top decotado, frequentemente mais que compensava para aquelas de proporções gerais maiores.

 A referência do entrevistado a ser capaz de ser "um pouco emotivo às vezes", em adição à sua aparência esguia, indica claramente que a demonstração pelos homens de certas características comportamentais e atitudes associadas com a feminilidade era também mais comum na cena gótica do que na maioria dos elementos da sociedade fora dela. Isso certamente se reflete fortemente em alguns exemplos da música gótica, nos quais os estereótipos de temas emocionais, auto indulgentes e angustiados, todos os quais tendem a ser mais associados com a feminilidade do que com a masculinidade, são uma generalização, mas não de toda imprecisa.



Embora, não um tema na cena positive-punk do começo dos anos 80, ou, sem dúvida, de parte da música industrial tocada nos clubes góticos ao longo dos anos 90, parte da música gótica mais popular frequentemente exibia tais características. Notavelmente, as guitarras atmosféricas, teclados, tempos reduzidos, vocais lamuriosos e as letras angustiadas que caracterizaram muito da música do The Cure, serve como um exemplo consistente, como também certas baladas do The Mission, Fields of Nephilim, All About Eve, entre outros.



Do meio para o final dos anos 90, embora a influência da música industrial tenha resultado na incorporação na música gótica de sons mais dançantes e às vezes com guitarras mais pesadas, os temas líricos e o uso de tonalidades atmosféricas e emocionais significaram que a música reteve elementos de auto indulgência emocional.

A manifestação desta ênfase em ser emocional no comportamento dos homens góticos, de tempos em tempos, foi relacionada por uma participante ao que ela percebeu como uma grande tendência deles de permitir contato tátil entre homens:


~//~

— Eles (homens góticos) podem realmente se aproximar de outro homem. Eles não se sentiriam envergonhados de abraçar outro homem ou chorar no seu ombro ou alguma coisa desse tipo que, se eles fossem mais machões então diriam "ei, sua bixona, você não pode segurar minha mão", você sabe.

~//~


A ênfase, tanto para homens como para mulheres, em uma aparência feminina, foi também relacionada com uma aceitação geral e, às vezes, até veneração da ambiguidade sexual. Enquanto a maioria dos góticos se comportava de acordo com as normas heterossexuais perante a sociedade como um todo, havia muito pouca, senão nenhuma, desaprovação ou surpresa, nos clubes góticos, quando eram vistos pessoas do mesmo sexo andando de mãos dadas, se agarrando ou se beijando. Além disso, muitos homens e mulheres góticos, durante conversação informal e em ocasionais discussões em fóruns online durante minha pesquisa, entusiasticamente indicaram que sentiam atração por góticos de ambos os sexos. Às vezes existia a nítida impressão de que as sexualidades não heterossexuais, enquanto certamente não sejam a regra, eram uma transgressão a ser admirada.



Tal incomumente alta incidência e aceitação, fora da cena gay ou da cena fetichista, de comportamento homoerótico, pode estar relacionado a diversos fatores, especialmente a forma pela qual a ambiguidade sexual e de gênero tendem a ser associadas pela mídia, a influência direta de músicos relacionados a cena aparentemente bissexuais, notavelmente o ancestral glam-rock do gótico, David Bowie, a experimentação e transgressão em geral, sexual ou de outros tipos, associadas ao tão renomado clube Batcave inicial dos anos 80 e o degrau de sobreposição entre o gótico e o fetichismo.
Todavia, parece altamente provável que este processo também envolveu uma reação um pouco mais gradual e enraizada, da parte de alguns góticos(as), a estar regularmente em um meio ambiente no qual a divisão entre homens e mulheres foi substancialmente diluída pelo estilo subcultural. (...) Assim, uma entrevistada pôde me explicar que ela considerava a ambiguidade de gênero e a ambiguidade sexual completamente entrelaçadas:


~//~

— Da forma que nos vestimos... sempre existiu aquele elemento de bissexualidade, quero dizer: você vê homens de aparência bastante feminina, não?

~//~


Ela continuou desenvolvendo seu ponto de vista relacionado a sua própria sexualidade, explicando que ela era atraída por formas específicas de feminilidade, as quais, no contexto específico da cena gótica, ela poderia encontrar tanto em homens quanto em mulheres. Embora virtualmente impossível de provar, parece plausível que uma mulher atraída por um tipo específico de aparência gótica feminina nos homens possa se direcionar na busca de características igualmente atraentes quando elas são exibidas por uma mulher. Da mesma forma, do ponto de vista de um homem gótico, a distância entre ser atraído por uma forma subcultural de feminilidade em uma mulher e ser atraído por características semelhantes em homens góticos parece mais superável em um meio ambiente tão andrógino.



Tendo se tornado estabelecida, as expressões livres de bissexualidade em clubes góticos provavelmente se reproduziram mais diretamente, da mesma forma que aquelas outras modas comportamentais e estilísticas. Isto não quer dizer necessariamente que desejos sexuais possam ser conscientemente manipulados, mas, simplesmente, como Came colocou: "a visibilidade cria oportunidade para outros" (Came,1996:27). Se foi o meio ambiente subcultural que causou uma mudança na sexualidade de participantes anteriormente héteros, ou se ele simplesmente possibilitou a indivíduos já pré dispostos a atração ao mesmo sexo a consumá-la na prática, parece uma questão que demandaria bem mais espaço do que temos aqui. De qualquer forma, ambas as interpretações servem para enfatizar o ponto chave geral que, no que é relacionado a questão de gênero e, por extensão, a sexualidade, a cena gótica desenvolveu um meio ambiente estilístico e normativo altamente diferenciado.


@HailJon

Comentários

Postagens Mais Visitadas

Conceito que a Sociedade Possui em Relação à Subcultura Gótica

Subcultura Gótica - Origens, Influências e Consolidação

Entrevista com Góticos #01

Escultura Gótica

Cultura Obscura & subcultura Gótica

Origem do Termo "Gótico"

Símbolos na Subcultura Gótica

Como Funcionam os Castelos

Contos e Lendas Medievais